“O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.”
SIMONE DE BEAUVOIR. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida.
O Brasil contemporâneo mostra-se um terreno dos mais férteis para a difusão das estéticas do terror e da distopia. Falar em “país do futuro” e evocar a visada utópica de Stefan Zweig hoje parece anacrônico e demodê – até porquê o autor em questão suicidou-se em Petrópolis, certamente frustrado em suas expectativas de que o Brasil seria o paraíso da concórdia das raças e gentes. Hoje, para nós, faz muito mais sentido a tirada de Millôr que afirma ser este “um país com um longo passado pela frente”. Nossa arte expressa a época catastrófica que atravessemos através de fenômenos estético-políticos de tintas distópicas como Medida Provisória, Bacurau, Marighella, Carro Rei, Pajeú, Branco Sai Preto Fica, além do álbum Brutown dos Baggios.
Esta distopização conexa da sociedade e da arte brasileira certamente deve-se à grave extensão do fenômeno que Simone de Beauvoir diagnosticou: a cumplicidade dos oprimidos com seus opressores que se manifesta furiosamente no bolsonarismo. Este enlace afetivo entre uma elite extremista de direita e seus acólitos espalhados pela sociedade certamente depende de condicionamentos – gosto ainda de falar em lavagem cerebral – que realiza-se em templos e igrejas, em escolas e lares familiares, preparando corações e mentes para a adesão conformista à dominação masculina, ao racismo estrutural que gera privilégios para a branquitude, à heterossexualidade compulsória etc.
Na prática, muitos oprimidos não lutam contra seus algozes, carcereiros e tiranos, mas tornam-se cúmplices do empreendimento lucrativo da opressão, capangas e funcionários da manutenção de um status quo que não os beneficia, apenas os emprega. Nesta empresa de opressão, são empregados fudidos, mal-pagos e sempre prontos a serem na sarjeta jogados ao capricho do patrão. Porém, têm algumas recompensas simbólicas, eu diria até imaginárias, e não é a menor delas a crença de estar “com Deus do seu lado” e pertencer ao time das “pessoas de Bem”.
Nosso problema não é somente o indíviduo Jair Bolsonaro, sua psicose e suas patologias de arrogância e negacionismo, seu militarismo brucutu e sua boçalidade de jorro contínuo, mas o tamanho assustador de seu fã-clube. O monstro não consiste apenas no ininterrupto fluxo de atrocidades que a boca-de-esgoto de Seu Jair vomita. O monstro de milhares de cabeças consiste nos milhões que o aplaudem, nos 51 milhões que o levaram ao 2º turno nas urnas em 2 de Outubro de 2022, que o repetem feito papagaios de fascista e pangarés de um “Trump dos Trópicos” que gostaria de transformar o país numa Gilead – a distopia puritana e religiosamente fundamentalista que congrega todas as opressões em The Handmaid’s Tale.
Se, no cenário artístico internacional, vêm produzindo repercussões significativas os romances de Atwood (O Conto da Aia e sua continuação, Os Testamentos), que concedem as matérias-primas para uma das séries mais sinistras e visionárias de nossa época, no âmbito nacional também é notável a preocupação de alguns de nossos melhores artistas diante da ascensão do autoritarismo teocrático.
Este hoje empodera-se e promulga slogans como “Deus acima de todos” ao mesmo tempo que prega o ódio às minorias (que deveriam se curvar às maiorias), gerando o que talvez seja a mais grave crise que o Brasil já enfrentou no que diz respeito a uma crise específica: a ascensão do cristofascismo, i.e., o empoderamento de vertentes cristãs (e não somente entre evangélicos neopentecostais) que flertam explicitamente com o fascismo. O cristofascista, supremacista branco, racista empedernido, misógino e homofóbico Jair Genocida Bolsonaro é um dos maiores epígonos deste movimento.
Graças ao talento descomunal de Anita Rocha da Silveira, já temos a mais potente expressão cinematográfica desta conjuntura terrivelmente evangélica em que hoje estamos imersos. Em seu segundo-longa metragem, a cineasta que estreou com o impressionante Mate-me Por Favor (2015) realiza com Medusa (2022) uma louvável “afronta ao extremismo evangélico” e ao “conservadorismo patriarcal”, como disse o Diário do Nordeste.
Em Medusa, milícias de mulheres evangélicas, mascaradas com uma face de plástico que as uniformiza, perseguem e lincham aquelas mulheres que consideram devassas, promíscuas, pecadoras e desviantes. Este é o avesso da sororidade: há o estabelecimento de uma cisma violenta no campo do feminino. De um lado, “mulheres de bem” – recatadas, do lar, submissas, servis aos senhores da terra e ao Senhor do Céu. De outro, mulheres más, vadias e meretrizes que devem ser espancadas, desfiguradas, queimadas com querosene, lançadas na sarjeta, filmadas ensanguentadas por um celular que deseja humilhá-las nas redes, lançando-lhes à sanha sádica das milícias digitais de trolladores.
Medusa fornece a mais perfeita expressão fílmica do que significa um país terrivelmente evangélico.
A expressão terrivelmente evangélico não foi celebrizada pelos críticos do fanatismo religioso que busca empoderamento político. Foi propagada sim por seus promotores: o próprio Jair Genocida Bolsonaro fala frequentemente, em tom de elogio, nas pessoas “terrivelmente evangélicas” que ele celebra e emprega – a exemplo da pastora Damares Alves (eleita senadora nas eleições de 02 de Outubro de 2022) e do ministro do STF André Mendonça.
Às vésperas das eleições de 2022, viajando para a Inglaterra para transformar o enterro da rainha em palanque, o Jair levou consigo o pastor Silas Malafaia em uma viagem bancada com dinheiro público (como revelado por Metrópoles). Também na reta final da eleição, houve um “tsunami bolsonarista” nas igrejas evangélicas neopentecostais que foi um show de horrores (leia reportagem da Folha de São Paulo).
“Meu interesse não é criticar a fé de ninguém, mas certas vertentes que se apropriam da Bíblia para promover discursos homofóbicos, racistas e machistas, comportamentos intolerantes”, disse a diretora carioca ao Diário da Nordeste. Corajosa, Anita Rocha – que carrega a responsa de ter o mesmo sobrenome de Glauber, apesar de não ser parente do autor de Terra em Transe – coloca os pontos de interrogação onde eles devem estar. Muita gente tem medo de criticar a religião e usa luvas de pelica para lidar com o fenômeno que só se consolida e expande: a ascensão do neopentecostalismo fascista, a fusão da besta-fera bolsonarista com uma fé intolerante, dogmática e propagadora de mil preconceitos.
Em Medusa, a personagem Melissa serve como uma espécie de “vítima exemplar” das fúrias desta nova teocracia puritana. Atriz de rara beleza e sensualidade, Melissa é atacada pela milícia de mulheres evangélicas trolladoras porque supostamente é “galinha” e transa com muitos homens diferentes – segundo o Patriarcado que muitas mulheres abraçam, a prerrogativa da infidelidade e da lascívia aceitável é dos machos. A beleza de Melissa precisa ser desfigurada pelo fogo. A sensualidade de Melissa precisa ser atacada na raiz ao impor a ela a feiúra pela queimadura.
A protagonista Mariana, interpretada magistralmente por Mari Oliveira, a princípio participa da gangue de jovens mulheres fanaticamente puritanas que, segundo a sinopse de Medusa, “tenta controlar tudo ao seu redor, incluindo outras mulheres, perambulando pelas ruas e espancando aquelas que consideram muito pecaminosas.” Mas Mariana estará embarcando numa jornada Lynchiana, num pesadelo filmado que evoca a fascinação de Anita Rocha por David Lynch e também por um horror corporal de escola Cronenberguiana. Ao perseguir e tentar agredir uma “desencaminhada”, Mariana acaba sofrendo, por parte de sua vítima que adere à auto-defesa, um corte fundo no rosto com um estilhaço de garrafa.
O filme tem algo que o aproxima das ambiências hi-tech sinistras de Black Mirror quando faz a crônica dos posts em rede social da gangue de fanáticas. Não basta humilhar, rasgar a cara, causar hematomas, ensanguentar depois de sovas e pontapés: as mulheres-feiticeiras, as devassas que não são do lar, as que recusam o recato das mulheres-de-bem, devem ser expostas em rede social, tornando-se vítimas exemplares cujo destino sofrido deve, nas deep webs, servir como ameaça a todas aquelas que porventura sintam-se tentadas a ir nas baladas do Capeta ou aderir à ideologia do Capiroto chamada feminismo & libertação sexual.
Em contraste com estes vídeos, que se assemelham a uma cobertura audiovisual de uma fogueira da inquisição em miniatura, há uma faceta que se conecta ao fenômeno que Paula Sibilia chamou de O Show do Eu. Uma das “mulheres-de-bem”, Michele (uma piscadela maroto à Micheque Bolsonaro, a primeira-dama terrivelmente evangélica?), em um ambiente todo pink, monta uma performance de si onde aparece bastante embonecada, fiél ao modelo de beleza imposto desde os EUA e que tem na boneca Barbie seu paradigma, e faz programas de aconselhamento e tutorial sobre… maquiagem para esconder cortes e hematomas. Obviamente, Michele não conhece o que Mary Wollstonecraft disse contra a educação patriarcal, tal qual defendida por Rousseau, no genial manifesto feminista inaugural, A Reivindicação dos Direitos da Mulher. Tampouco conhece o destino histórico de Olympe de Gouges. O filme revela uma cineasta mulher apontando a alienação de outras mulheres que se prestam a passar pano para os crimes do patriarcado e a se tornarem obedientes servidoras do opressor.
O filme provoca, através da sátira, toda uma cultura on-line baseada nos influenciadores digitais que, para conseguir sucesso e influência, precisam aderir ao mais espúrio conformismo: não se critica a dominação masculina, a cultura do estupro, a misoginia e a homofobia que se imiscui nas ideologias religiosas e políticas dominantes, mas se prefere ensinar as mulheres a esconderem as feridas e cicatrizes causadas pela violência patriarcal.
Medusa é um dos melhores filmes de terror já realizados no Brasil justamente pois sabe se apropriar da realidade concreta para plasmar em cinema algumas tendências sinistras que se manifestam no país, a exemplo dos exércitos de fanáticos que prometem ser “Gladiadores do Altar” ou, no caso do filme, “Vigilantes de Sião”.
“Ordem, Deus e Progresso” é o slogan que se lê enquanto os jovens, condicionados à masculinidade tóxica e à fé cega no deus das carnificinas, treinam para serem uma corporação de soldados do Senhor. É tenebroso também o aspecto de endogamia que faz com que o “povo evangélico” só queira relacionar-se dentro de sua própria bolha. Tenebroso, também, o discurso pastoral para suas ovelhas, reforçando esta endogamia, esta cultura-da-bolha, este sectarismo: o pastor prega que é preciso recusar relacionamentos e diálogos com quem é “do mundo” para ficar somente em intercâmbio com “irmãos e irmãs”. O pastor garante a Mariana que ela não precisará ser exorcizada caso possa orar para afastar o Capeta de seu coração – que ela aceite algum Vigilante de Sião como maridão!
Destaco ainda outro elemento do filme de Anita Rocha que adiciona uma vibe horripilante e deixa Medusa com um impacto afetivo tão tremendo: o hospital lotado de pessoas em coma em que Mariana começa a trabalhar como enfermeira. Ali, Mariana cairá em tentação e terá um hot affair com seu colega enfermeiro, começando os descaminhos da carne que a levarão a se encrencar com o establishment teocrático em que está imersa.
Nas cenas do hospital, enquanto toca os corpos daqueles mortos-vivos, daqueles zumbis-do-real, Mariana e seu namoradinho às vezes inventam histórias sobre as trajetórias de vida daqueles que foram parar ali, naquela meia-vida do coma. São cenas geniais, onde o horror não é gráfico mas verbal – onde não há cabeças cortadas nem sangue jorrando, mas sim um terror transmitido pela narrativa em palavras. Aqui, Anita alça-se às alturas dignas de Ingmar Bergman. Gosto especialmente da narrativa que o rapaz faz de um suposto crime de homofobia: um dos pacientes em coma, segundo a especulação do rapaz, teria sido visto de mãos dadas com o namorado e teria sido agredido por uma gangue-da-fé infectada pela homofobia feroz que pastores e padres e presifakes não cessam de insuflar.
O filme também propicia reflexões sobre o fenômeno da histeria, costumeiramente atribuída às mulheres, conectando esta a uma ambiência moral onde reina a repressão sexual e a rigidez comportamental. Quando se transforma em histeria massiva, uma espécie de sororidade do grito, este hysteron une úteros num jailbreak, num levante quebra-jaulas, numa insurreição de Medusas, Melissas e Marianas. O filme adquire tintas insurrecionais, prefigurando um dionisismo feminista de alta voltagem e decibéis. Esta polifonia de gritos é uma revolta contra a irracionalidade que também embarca num certo irracionalismo: contesta-se a “peste emocional” de que fala Wilhelm Reich com uma contra-cultura de alta emotividade e que vai na contracorrente, que é um correr para a selva já que a jaula das casas e dos templos tornou-se demasiado insuportável.
Em belíssima entrevista, Anita expressou muito bem as influências do noticiário que a inspiraram e também as conexões com o mito grego de Medusa, punida por Atena:
– O que te motivou a adaptar o mito de Medusa, transportando-o ao Brasil contemporâneo?
“Quando li as notícias sobre as jovens que se juntavam para agredir uma outra mulher, logo me recordei do mito de Medusa. Na versão mais conhecida do mito, Medusa era uma das mais lindas donzelas existentes, sacerdotisa do templo de Atena. Mas um dia ela cedeu às investidas de Poseidon, enfurecendo Atena, a deusa virgem, que transformou seu belo cabelo em serpentes, e deixou seu rosto tão horrível que uma mera visão transformaria os que a olhassem em pedra. Medusa foi punida por sua sexualidade, por desejar, por não ser “pura”. Da junção entre mito e realidade me ocorreu que mesmo com o passar dos séculos, faz parte da construção da nossa civilização as mulheres quererem controlar umas às outras. E que talvez essa seja uma forma de mantermos o controle de nós mesmas. Afinal, crescemos com medo de ceder aos nossos impulsos, e até de sermos consideradas “histéricas”. O controle também passa pela aparência, pela beleza, pois está impregnada em nós a ideia de que este é o nosso principal atributo. Fazemos dietas para chegar ao peso “padrão” e passamos por procedimentos estéticos dolorosos na esperança de sermos jovens para sempre. Ao se afastar do que até então pensava ser o padrão, Mariana poderá enfim encontrar seu caminho para um encontro muito especial. Encontro este, que ao invés de petrificar seu corpo, o despertará para novas sensações e desejos.” ANITA ROCHA DA SILVEIRA – LEIA ENTREVISTA COMPLETA
No fim, Medusa adquire toda uma densidade histórica ao evocar a mitologia grega em conexão com a atualidade do cristofascismo neopentecostal. Percebo também que há uma tematização explícita do tema do dionisismo: no fim das contas, o filme encena um conflito e uma contradição excruciante que já estava na peça As Bacantes de Eurípides (maravilhosamente revivida no Brasil contemporâneo pelo Teatro Oficina): de um lado, o poder puritano de Penteu, o rei de Tebas, e de outro as mulheres que abandonam seus lares e dirigem-se às florestas para, entre mênades e sátiros, com muita embriaguez e arte, celebrarem o deus Dionísio. Penteu, hoje, pode ser encarnado por Edir Macedo, por Malafaia, por Feliciano, por Jair Genocida Bolsonaro. Medusa encena o levante das bacantes em revolta contra o cristofascismo e cheias de ânsias, rotuladas de “histéricas”, por uma libertação dos corpos e das relações.
Outros filmes recentes, como Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019), Papicha (Monnia Meddour, 2020), Fé e Fúria (Marcos Pimentel, 2019), Religulous (Larry Charles, 2008), tem fortalecido nosso arsenal de armas da crítica e da sátira para que possamos afrontar as distopias terrivelmente evangélicas que nos assolam. Medusa soma-se a eles como uma obra visceral, crucialmente relevante, horripilantemente crítica, assustadoramente realista, com a qual Anita Rocha da Silveira consolida-se como uma das mais pertinentes artistas da 7ª arte no Brasil. Cineasta brilhante, com pleno domínio de linguagem, capaz de ritmo narrativo indefectível, ela está hoje afrontando de maneira muito oportuna, com kairós perfeito, um dos males de nossa época: a distopia cristofascista que tem tudo a ver com a resiliência entre nós do bolsonarismo – tendência social que infelizmente sobreviverá à derrocada e possível aprisionamento de Jair Genocida Bolsonaro.
O que há de mais assustador é isto: quem será o próximo Mito que os fanáticos do Brasil vão celebrar e idolatrar como Messias Salvador da pátria, da família e das sacrossantas tradições? Quem será o próximo ídolo daqueles que se prestam a servir e a conservar as tradições da opressão? Até quando vamos assistir à mitologização alienante que quer transformar em fato cósmico o que é construção social, vendendo como “vontade de Deus” o que não passa de imposição dos homens?
Por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
Goiânia, 03 de Outubro de 2022
BAIXAR O FILME COMPLETO EM TORRENT (VIA FÓRUM MAKING OFF)
LEITURAS RECOMENDADAS
FILMOGRAFIA DA DIRETORA
CURTAS
O Vampiro do Meio-Dia (2008) https://vimeo.com/59063066
Handebol (2010) https://vimeo.com/27597310
Os Mortos-Vivos (2012) https://vimeo.com/35227232
LONGAS
Mate-Me Por Favor (2015)
Medusa (2022)
PAPO DE CINEMA ENTREVISTA ANITA ROCHA DA SILVEIRA
Publicado em: 03/10/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia